“O ser humano alcançou seu tão sonhado objetivo
De ser o dono do planeta, e seu maior inimigo.”
Coquetel Molotov – “Uma certa manhã em 1999”
De ser o dono do planeta, e seu maior inimigo.”
Coquetel Molotov – “Uma certa manhã em 1999”
A tarde transcorria normal, até mesmo um pouco calma demais pros padrões de trabalho intenso de bordo. Sempre é bom aproveitar ao máximo esses momentos de relativa tranquilidade, pois realmente nunca se sabe com certeza absoluta o que pode acontecer em seguida; por mais que haja diversos equipamentos pra monitoramento da natureza, é ela quem manda no planeta. Se há um ditado popular que tem precisão cirúrgica, é aquele que diz que “depois da tempestade, vem a calmaria”.
Na verdade, o certo seria completar: “e vice-versa”.
As tarefas diárias estavam quase todas completadas, e a expectativa girava em torno do horário escolhido pelo Capitão para realizar o treinamento semanal de combate a incêndio e abandono, uma exigência da empresa contratante que é sempre cumprida aos sábados. Nesse procedimento, todo o pessoal designado pra trabalho na área externa deixa os seus postos de trabalho (ou suas cabines, caso estejam no horário de repouso) e se dirige pros seus respectivos pontos de encontro, que ficam ao lado das baleeiras de desembarque de emergência. Os que trabalham na ponte de comando permanecem por lá, pois toda ajuda é necessária pra coordenar as informações enviadas de 6 baleeiras diferentes – geralmente, ao mesmo tempo.
De repente, um chamado do 2º oficial de náutica:
- O Capitão está te chamando na área externa com máxima urgência.
Hm, boa coisa não deve ser. E não era mesmo: de binóculos nas mãos, o Capitão e um outro oficial olhavam para um ponto branco se deslocando no mar, bem próximo ao navio. Pergunto o que tinha acontecido, e o Capitão responde:
- Tem uma tartaruga-bebê presa naqulele saco plástico, por favor veja se tem algum barco pesqueiro nas proximidades e o chame pelo rádio.
Quando ele me passou o binóculo, vi a cena em detalhes. A sacola parecia ser dessas de supermercados; de alguma maneira, as duas alças se enroscaram na tartaruga de forma longitudinal, enganchada na parte de baixo de seu casco e passando por baixo de seu pescoço. Não sou biólogo nem nada, mas deu pra perceber que o animal estava se deslocando com dificuldade por caus do lixo atado a si.
E lá fui eu tentar a sorte. Geralmente os barcos pesqueiros não são muito benvindos nas áreas próximas a navios e plataformas de perfuração, pelo simples fato de que suas linhas e redes podem se enrolar nos propulsores da unidade. Se isso acontece, é prejuízo na certa: só no ano passado, três unidades tiveram de ser rebocadas pra estaleiros por conta de linhas e redes que pararam suas máquinas. Quando se sabe dos valores milionários envolvendo os contratos entre as empresas de petróleo e unidades como essa, sabe-se que os dias parados representam um prejuízo de alguns milhões. Seja na moeda que for, é muito dinheiro – pra mim, pra você e pras empresas também.
Por conta disso, quando um barco pesqueiro é chamado pelo rádio por um navio como esses, ele já sabe que tem alguma coisa de errado e parte pra uma manobra evasiva. Eles sabem que estão errados e, principalmente, que o Capitão terá de relatar a presença deles no seu relatório diário de operações. Só que dessa vez era diferente, como deixei claro no primeiro contato pelo rádio:
- Precisamos de sua assistência na área de proa a bombordo, pois tem uma tartaruga presa num saco plástico. Favor resgatar o animal.
Repito uma, duas, três vezes – e nada. Sei que eles estão me ouvindo de forma alta e clara, pois dá pra ver a antena do rádio VHF na parte de cima do barco. No entanto, não consigo nenhum resultado prático; vejo que um dos homens está no leme e outros dois estão recolhendo uma rede; como o mar está meio agitado pra uma embarcação pequena como aquela, sei que dificilmente eles deixarão o que estão fazendo pra socorrer o pobre animal.
Mas não sou de desistir com facilidade e insisto no rádio, sem obter resposta. Do lado de dentro, estamos apenas eu e um dos oficiais de náutica; do lado de fora, outros 2 oficiais e o superintendente de operações se juntam ao capitão pra observarem a trajetória da tartaruga, que deriva pra cada vez mais longe tanto do navio quanto do barco pesqueiro. Eles tentam sinalizar pro barco, que agora não só finge não estar ouvindo como também fazem de conta que não está enxergando os sinais.
Eles se aproximam tanto que tenho uma ideia: pegar o megafone pra gritar-lhes instruções. A campainha do aparelho é alta e estridente, mas não temos certeza de que será ouvida lá embaixo no mar mexido. Não custa tentar, e a reação dos homens na proa do barco me dá a certeza de que eles ouviram o chamado, já que os três levantaram as cabeças pra olharem pra nós.
Volto ao rádio, insisto com as chamadas – e nada.
Um dos oficiais volta da área externa com a cabeça baixa:
- Perdi a tartaruga de vista, agora já não adianta mais nada chamarmos o barco.
As expressões de frustração são evidentes. Um silêncio espontâneo e simultâneo toma conta dos cinco homens no ambiente, como se todos nós pensássemos a mesma coisa: tanta tecnologia e tantos recursos não foram suficientes pra salvarmos um habitante nativo dos mares. E o pior, um ser de nossa espécie foi incapaz de jogar o lixo no lugar certo e, agora, é o responsável pelo destino nada animador de um ser dos mares.
Bem, cada um tem de voltar às suas respectivas tarefas e a vida vai continuar pra todos nós, mas será que podemos dizer o mesmo da tartaruga? Tudo indica que não. Torço pra que acabe bem pra ela, embora saiba que isso é uma possibilidade tão improvável quanto uma pessoa achar uma agulha num palheiro.
Pobre animal; naquele que pode ter sido o seu primeiro e último contato com os seres humanos, selou o seu destino final – sem chance.